Obra de Brocos y Gómez deu margem a uma série de interpretações sobre as ‘raças’ do mundo. A mais decadente delas seria a negra.
Quatro pessoas
estão em frente a uma casa humilde. Uma senhora negra, de pé, parece estar
agradecendo a Deus por ter recebido alguma graça. A jovem mulata tem uma
criança branca no colo e está sentada ao lado de um homem mais claro. Tudo isso
em um ambiente onde parece reinar a mais profunda harmonia. O quadro
“RedençãodeCan” (1895), do pintor espanhol Modesto Brocos y Gómez (1852-1936),
e que pertence ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, serve como retrato
da sociedade brasileira miscigenada. Uma das interpretações da obra dá a
entender que a avó negra, por intermédio do neto branco, estaria se libertando
de uma condição racial que a oprimia.
O trabalho de
Brocos y Gómez, artista que se radicou no Rio de Janeiro e atuou na Escola de
Belas Artes, chegou a ser usado pelo diretor do Museu Nacional, João Batista de
Lacerda, para ilustrar a apresentação de uma tese no Congresso Universal das
Raças, realizado em Londres em julho de 1911. O nome escolhido pelo pintor para
batizar seu quadro se refere a Cam, um dos filhos de Noé. Mais do que uma
citação religiosa, remete a outra interpretação: a descendência do personagem
bíblico – Cam, Jafé e Sem – estaria associada a algumas tipologias raciais
inventadas no século XIX.
Desde os tempos
medievais, vários estudiosos procuraram adequar a diversidade humana aos
acontecimentos descritos no livro do Gênesis, interpretando e reinterpretando o
repovoamento do mundo – depois do Dilúvio – de várias maneiras. E especularam
sobre quais nações ou povos teriam derivado dos três irmãos.
Antes que
surgissem as primeiras classificações raciais da humanidade no século XVIII,
duas crenças se afirmaram depois da descoberta da América, quando o
conhecimento sobre outros povos se ampliou: os povos considerados decadentes
estariam associados ao paganismo, e os negros estariam vinculados à prole de
Cam. Mesmo com a utilização de vários critérios para justificar essas
“descobertas”, especialmente práticas religiosas, canibalismo e outros
“costumes” considerados inconciliáveis com a civilização cristã, era normal
associar a cor escura da pele à degeneração mais extrema – condição mais do que
conveniente para justificar a prática da escravidão. Aqueles que se apoiavam na
Bíblia sustentavam que todas as raças humanas descendiam de um só tipo, e que
as diferenças entre os europeus e os outros povos se deviam a graus distintos
de decadência e, por vezes, a fatores ambientais e climáticos.
De acordo com
essa linha de pensamento, os descendentes de Jafé teriam dado origem aos
europeus, e os de Sem, aos asiáticos. Mas os de Cam, que acabariam servindo de
estopim para o surgimento dos negros africanos, seriam assolados por uma
maldição. Esta teve início quando Noé, em um momento de embriaguez, despido,
adormeceu. Enquanto seus irmãos trataram de cobri-lo em sinal de respeito, Cam
riu da condição de seu pai. Mais tarde, ao saber da história, Noé amaldiçoou
esse filho, condenando toda a sua descendência à escravidão. Tal episódio,
contado no livro do Gênesis, do Antigo Testamento, resultou na posterior
desqualificação racial dos negros. Por isso o teor religioso nos discursos
sobre a desigualdade biológica da humanidade prevaleceu ao longo do século XIX,
justificando a suposta inferioridade da “raça negra”, inclusive no Brasil.
As analogias
bíblicas foram aos poucos substituídas por outras teorias. Vários cientistas
que classificaram a humanidade em raças, com base em critérios geográficos,
linguísticos e biológicos díspares, acreditavam que a “raça branca” teria surgido
na região do Cáucaso ou na região montanhosa no norte da Índia. Daí a
utilização de termos como camita, semita ou caucasiano para designar certas
tipologias raciais criadas pela Antropologia, inclusive no início do século XX.
Em geral, os camitas englobavam os negros, ao passo que os semitas abrangiam
não só os judeus como todos os outros povos do Oriente Médio.
Essas
observações mostram como eram arbitrárias as formas de classificação racial,
inclusive quando passaram do campo religioso para os domínios da ciência. Até
mesmo o mito da superioridade da “raça ariana” se apoiou em uma suposta verdade
científica, quando o teórico racista francês Joseph Arthur de Gobineau
(1816-1882) publicou seu famoso Ensaio sobre a desigualdade das raças
humanas (1853-1855). Ele se referiu ao “excesso de mestiçagem” para
justificar a decadência das civilizações. Gobineau chegou a viver algum tempo
no Rio de Janeiro como representante diplomático da França, entre 1869 e 1870,
e alegou que, por conta do desregramento da mistura de raças desiguais, o
Brasil jamais alcançaria um estágio elevado de civilização.
Essas questões
marcaram intensos debates sobre como se daria a formação do povo brasileiro,
sobretudo no início da República. Neles estavam mergulhados vários pensadores –
como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alfredo Ellis Junior, Oliveira Vianna e
Nina Rodrigues –, além de políticos, funcionários públicos de alto escalão
encarregados da política imigratória e nacionalistas de todos os matizes. Todos
eles discutiam a mestiçagem, tendo em mente uma futura raça histórica
brasileira, resultante de um processo de branqueamento da população. Essa
tendência presumia a ausência de preconceito racial no Brasil, a intenção de se
procurar cônjuges mais claros dentro da sociedade e a continuidade da imigração
europeia – que atingiu seu auge entre 1888 e 1914.
O quadro de
Brocos y Gómez sintetiza a tese de branqueamento desenvolvida por João Baptista
de Lacerda que foiapresentada em Londres com o título “SobreosmestiçosnoBrasil”.
Nela, há uma reprodução da pintura acompanhada da seguinte legenda: “o negro
passando ao branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças”.
Dessa forma, a obra de arte demonstra um fato científico que, na verdade,
expressa um ideal de formação nacional. Para Lacerda, brancos e negros não eram
espécies distintas, e sim raças cuja miscigenação produzia uma prole fecunda.
Ele ressaltava que o vigor dos mestiços podia ser atestado por mulatos que
ocupavam altos cargos públicos. Ainda segundo a tese do médico, a imigração e a
ausência de preconceito racial cooperariam para extinguir os mestiços, pois em
um século a população brasileira seria majoritariamente branca, e os negros e
índios provavelmente desapareceriam.
Esse ideal de
nação, baseado na formação de uma raça histórica apropriadamente brasileira e
de raiz lusitana – ou latina, tendo em vista as correntes imigratórias mais
significativas, originárias da Península Ibérica e da Itália –, era
compartilhado por boa parte da elite republicana na virada para o século XX, e
persistiu por várias décadas. O uso da obra de arte como ilustração, por outro
lado, indica que o ideal de branqueamento tinha uma tradução popular antes da
formalização científica de Lacerda. No âmbito da história da arte no Brasil,
ele pode ser considerado uma obra singular, que representa um ideal de nação
configurado no início da República e que repercute até hoje.
Artigo escrito por: Giralda Seyferthé professora
da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de Imigração e cultura no Brasil
(Ed. UnB, 1990). Disponível em:
http://www.revistadehistoria.com.br
Saiba Mais - Bibliografia
BANTON, Michael. A idéia de
raça. Lisboa: Edições 70, 1979.
MAIO, Marcos C. e SANTOS, Ricardo
V. (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz,
1993.
SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo
das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Nenhum comentário:
Postar um comentário